Nota
0

Por Kyanja Lee

Gláuber Soares reproduz com uma fidedignidade ímpar o universo e o linguajar peculiar, repleto de gírias, do protagonista Yake, como se tivesse realizado uma imersão nesse bairro periférico da zona norte de São Paulo, o Jardim Brasil que dá título ao romance; e se infiltrado junto a personagens reais; estudado de perto esses tipos, seus cacoetes, gostos. É como se estivéssemos diante de todas as mazelas, nos meandros do que dita a lei nos becos escuros das quebradas; os extremos da miséria sendo narrados pelo adolescente Yake, que acabou de completar quinze anos e sobrevive com a mãe, aos trancos e barrancos, como filho único de pai desconhecido (ele saberá depois a origem de seu cabelo loiro e apelido alemão, visto que a mãe é morena, com traços indígenas).

O artifício de que se vale o autor para que o leitor compreenda drama e universo tão diversos do seu (pelo menos da grande maioria), sem estigmatizar um personagem que facilmente poderia ser classificado como “mais um perdido no mundo”, “sem chances de redenção, afinal, é fruto do meio”, “Bandido bom é bandido morto”, é fazer o leitor colar no protagonista e enxergar as motivações, sentimentos, pensamentos e até aspirações muito humanas de Yake. Assim, atendendo ao seu convite, o leitor se vê totalmente imerso na narrativa conduzida pelo protagonista, que se dirige a ele com vocativos muito peculiares como: truta, mano.

A mãe tem uma dívida no cartão de crédito que não para de crescer… Sempre ligavam para cobrar. Isso soa tão familiar, não? Um passo para Yake se envolver com o crime e trabalhar para um traficante, repassando drogas em boca de fumo, tudo com o propósito de ajudar a mãe a saldar a dívida do cartão.

São tantas aventuras, narradas em um ritmo ágil e sem firulas, diálogos curtos, frases com economia de verbos e sem adjetivos desnecessários, além de um envolvimento bastante improvável (mas verossímil) com uma namorada de ascendência oriental, que o leva a conhecer e se encantar com o balé de forma apaixonada, a ponto de querer aprender a dançar e até sonhar em passar na audição para o Bolshoi, a escola mais conceituada de balé no Brasil.

“Alguns nascem com o dom. Nadam como andam. Parecem peixes na água. Ou andam como nadam. Numa integração total com o meio. Subvertem a ordem. Outros não têm o dom e, sem a arte, se atiram. Em qualquer lugar, as obras dos que não têm o dom são mirradas. Mas não podemos dizer que não se divertem. Eu, desde pirralho, só entro naquilo que tenho o dom. Na minha área dão o nome de manha.”

É assim que ele descobre que tem a manha da leveza e da sensibilidade da expressão corporal.

Gláuber Soares escreveu uma história magnífica, crua e sensível, realista sem ser panfletária, enfim, uma narrativa que só faz ficar ecoando no leitor uma fase retumbante do protagonista: “O Brasil não é justo, truta. Sei disso desde criança. E dos céus, na quebrada, só cai chuva”.

Valeu essa imersão em Jardim Brasil e recomendo demais a leitura!

Jardim Brasil – Alink Editora (2019) – Finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura: Livro do ano

Deixe um comentário